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Artigos e Opinião

04/08/2014 - 00h08

Corrupção: 'óleo na engrenagem'?

Fonte: Valor Econômico / Carlos Eduardo Soares Gonçalves (*)

Lembro-me de uma passagem do livro "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque, na qual ele relata o espanto de um estrangeiro tentando fazer negócios no Brasil Colônia. Basicamente, o tal homem de negócios se queixa da necessidade de conhecer as "pessoas certas", de estabelecer laços pessoais com certas pessoas para, por meio dessas conexões, ser um empreendedor de sucesso nestes tristes trópicos. Desde lá evoluímos, tortuosamente é claro, mas o caminho à frente, rumo a uma sociedade sem jeitinhos, sem personalismos e patrimonialismos e com menos burocracia, ainda é muito longo. Duas perguntas me norteiam aqui: devemos realmente nos preocupar tanto com isso? Se sim, exatamente por quê? E o que pode ser feito?
 
Há uma tese curiosa sugerindo que a corrupção é o óleo que faz uma engrenagem burocrática complicada e enferrujada rodar com menos chiado. Imagine se o empresário X não pudesse molhar a mão de um fiscal Y em troca de um desembaraço mais ágil da sua máquina Z importada - que fica lá estacionada por tempo indevido num contêiner no porto W. Sem corrupção, sem um "molharzinho" de mãos, ela iria ficar ainda mais tempo lá parada. A máquina parada no porto constituiu um tempo verdadeiramente perdido, com consequências ruins para o empresário e para a economia do país. Nesse caso, a corrupção, ao desembaraçar a máquina, ajuda a economia! Ou não?
 
Se você está achando que tem algo de estranho nessa tese, é porque de fato tem. A corrupção facilita navegar pela burocracia lenta e dificultosa, sim, mas por que raios essa burocracia precisa ser tão lenta e tão dificultosa a ponto de tornar lucrativo subornar o senhor Y? Veja bem, fiscalização em si não é algo necessariamente ruim, mas por que ela é tão bisonha em alguns países e ágil em outros?
 
Pense nisso: desembaraçar os embaraços gera uma possibilidade de ganhos extras para os senhores Ys. Eles vendem facilidades. Mas não faz sentido lógico argumentar que a corrupção ajuda a economia a fluir melhor, dado que, sem a burocracia entravada ao extremo e as leis complicadas, não seria necessário molhar a mão do senhor Y para ter-se acesso à máquina comprada e, portanto, nesse mundo, não haveria corrupção.
 
Não estou dizendo que os mandachuvas da burocracia, os senhores Bs, decidem deliberadamente manter a coisa emaranhada para poder vender depois as tais facilidades. Estou dizendo que a corrupção se nutre disso, não que a burocracia tenha sido desenhada com esse objetivo necessariamente. Zelar pela preservação de uma burocracia kafkiana pode muito bem ser fruto do desejo - natural ao ser humano - de salvaguardar o famoso e histórico e importante órgão burocrático H que o senhor B preside com orgulho e garbo. Simplificar vistorias, procedimentos e inspeções naturalmente levaria a uma redução do tamanho e do orçamento destinados a H. E isso não agrada a B nem a seus funcionários.
 
Os economistas vêm se esforçando para entender empiricamente a relação entre corrupção e desenvolvimento econômico-social. Não é muito fácil porque, em princípio, é possível que menos nível de desenvolvimento gere corrupção ou que coisas que afetam adversamente o crescimento também gerem mais corrupção (na coluna de um mês atrás, "O ovo e a galinha", debato esses problemas de estimação com mais cuidado). Mas até aqui, usando técnicas sofisticadas e experimentos naturais, os resultados mais convincentes sugerem que a tese do óleo na engrenagem não é boa, não. Mais corrupção está associada, em geral, a menos crescimento econômico, menos qualidade no provimento de bens públicos etc., isso já isolando o impacto de outras variáveis relevantes sobre o desempenho da economia.
 
E há corrupções e corrupções. A mais virulenta para o desenvolvimento é a corrupção descentralizada, na qual muita gente rouba de modo não coordenado. Isso porque, nesse caso, um agente corrupto Y1 não leva em conta que ao empobrecer o empresário X e a economia, ele prejudica o agente Y2, que amanhã iria tentar extrair seu quinhãozinho gordo, mas encontra um X com menos riqueza depois de seu desafortunado encontro com Y1. E veja que Y1 até gostaria de poupar a galinha de ovos de ouro, para roubar mais um ovinho amanhã, mas o problema com essa estratégia é que, se ele fizer isso, se for menos corrupto hoje para que X e a economia prosperem, ele corre o risco de Y2 ir lá e se aproveitar da "leniência" dele no meio do caminho.
 
A corrupção de um "ditador perpétuo" é, nesse sentido, e contraintuitivamente, menos danosa à economia. Porque um ditador seguro de si e de seu poder não permite que seus subordinados dilacerem a galinha, que ele pretende ordenhar (sic!!) amanhã. Se ele percebe como altamente provável que nos anos seguintes seguirá no comando das rédeas do país, seu incentivo é predar pouco hoje, deixar o bolo crescer para poder se aproveitar no futuro. Há quem diga, empregando essa lógica, que o desastre de crescimento da África nos anos 1980 se deveu em parte ao fato de os ditadores de então terem percebido que os ventos da democracia começavam a soprar com vigor sobre seus países. O futuro encurtou-se para eles, e predar mais no presente se tornou a decisão mais apropriada (sob seu ponto de vista, claro).
 
Soluções para o problema?
 
A tese ingênua aqui é que, com o desenvolvimento econômico e avanços na educação, a corrupção naturalmente declinará. Na realidade, até onde sabemos a causalidade corre justo na direção contrária: sem avanços institucionais no combate à corrupção, no jeitinho, nos favoritismos etc. fica difícil galgar altos níveis de desenvolvimento. A melhora não vai cair do céu feito maná. E então?
 
Começo com um argumento não muito bem-aceito nos meios acadêmicos. Para mim, lideranças morais impactam o pensar e o agir das pessoas e geram expectativas mais sólidas de que o erro será efetivamente punido. Ou seja, acredito sim no efeito do "o exemplo vem de cima" - uma crença, admito, sem muita base científica, alicerçada tão só em observações casuais da vida em sociedade e família. E entendo que esse argumento apresenta uma enorme dificuldade adicional: como garantir que quem está em cima é alguém que defende veemente esses valores?
 
Leis e "enforcement" das leis são as armas preferidas dos cientistas sociais. No curto prazo, a lei afeta a conta "custo-benefício" do corrupto. E, no longo prazo, ela afeta hábitos, levando possivelmente a outro ponto de equilíbrio, com menos jeitinho, menos corrupção. Note também que há um elemento de múltiplos equilíbrios aqui: "se todo mundo rouba, não sou eu que vou ficar de fora" - até porque com muita gente roubando é mais difícil que o seu roubo seja detectado e punido. Mas se uma mudança legal afeta inicialmente o cálculo de uma massa de corruptos - vários deixam de praticar o mal por conta da lei - o efeito se multiplica pela mesma lógica, ao reverso: "dado que quase ninguém está roubando, não vou ser eu o ladrão da história".
 
Na prática precisamos então de duas ondas de reformas. Uma tornando mais ágil e severa a punição dos corruptos, e outra reformando procedimentos na burocracia estatal e na sua interação com o setor privado de modo a diminuir o escopo para ações corruptas - a agenda da desburocratização.
 
Mas espera aí. Quem vai votar essas leis? Os próprios políticos? Volto a isso em outro texto, quando for discutir sistemas eleitorais comparados.




 
(*) Carlos Eduardo Soares Gonçalves, professor titular de economia da FEA-USP e autor de "Economia sem Truques" e "Sob a Lupa do Economista" (Campus).
 
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